terça-feira, 14 de agosto de 2018

Crônica sobre a FLIP 2018 por Rosângela Vieira Rocha



A ALMA ENCANTADORA DA FLIP


por Rosângela Vieira Rocha



A 16ª FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – realizou-se no período de 25 a 29/07. Foram cinco dias inteiramente dedicados à literatura, sua principal atração, e às artes de modo geral: música, teatro, ópera, performances, ilustrações. Reside aí a diferença essencial entre a FLIP de 2018 e as anteriores. A Festa deste ano integrou, de maneira mais forte e democrática, várias formas de expressão artística.



As mudanças introduzidas no ano passado pela curadora Josélia Aguiar, jornalista baiana radicada em São Paulo, que desde 2017 desempenha a função, mantiveram-se e se expandiram. Sob sua curadoria, a Festa foi repensada, redesenhada e adquiriu novo formato. Além da programação oficial, que não se realiza mais dentro da Igreja Matriz e sim sob um toldo – ao lado do toldo onde fica o telão com setecentos lugares, em que a entrada é gratuita – foi oferecido um elenco de atividades paralelas nas vinte e duas casas alugadas pelas editoras (em 2017 havia sete). A paridade de gênero do ano anterior foi mantida – dezesseis escritores e dezessete escritoras – e registrou-se a participação crescente de autores negros, correspondentes a 30% do total de convidados.

Homenageando Hilda Hilst, poeta cuja obra só foi reconhecida após sua morte e que nos últimos anos vem sendo bastante estudada nas universidades, a FLIP surpreendeu pela riqueza da programação, tornando difícil a escolha do que assistir. Temas recorrentes na obra de Hilda, como amor, morte, sexo, finitude, Deus, nortearam as programações – tanto a oficial como a paralela – mas também buscaram atender à pauta atual, privilegiando o feminismo, a violência contra as mulheres, a discriminação racial, a imigração, a homofobia.
Na noite de abertura, a atriz Fernanda Montenegro interpretou durante uma hora texto de autoria da homenageada. Em seguida, houve a apresentação de uma ópera da compositora, musicista e artista multimídia Jocy de Oliveira.  

No dia seguinte, iniciou-se, entre os participantes que enchiam as pacatas e bonitas ruas da cidade antiga, a procura quase febril da programação das casas, que apresentaram, ao mesmo tempo, mesas de debates interessantes para todos os gostos.
Ao contrário de 2017, em que fui sozinha a Paraty realizar o sonho antigo de participar da Festa, dessa vez estava com um grupo de escritoras amigas de Brasília, o que tornou tudo mais divertido e animado. No ano passado, não conhecia a cidade e fiquei numa pousada longe do Centro Histórico, onde se realizam as atividades, motivo de transtorno para mim, que tenho problemas nos joelhos. Caminhar pelas ruas de Paraty, cheias de desníveis, não é fácil. Depois da experiência de 2017, estabeleci como prioridade, na escolha do local de hospedagem, a localização. E dei sorte, pois reservamos, com bastante antecedência, uma pousada em frente ao toldo do telão gratuito. 

 Quanto à programação, estabeleci dois critérios de seleção: o tema, em primeiro lugar, e a procedência dos debatedores, pois é muito mais difícil ter acesso aos escritores estrangeiros. Tive de abrir mão de ouvir celebridades brasileiras cujas opiniões me interessam e inclusive das quais compartilho, em alguns casos, mas é impossível escolher sem perder algo no caminho.
Gostaria muito de ter assistido à mesa “Barco com asas”, do programa oficial, com importantes debatedoras, entre as quais Maria Teresa Horta, cuja participação não foi presencial e sim por vídeo gravado. Uma das escritoras portuguesas mais importantes da atualidade, autora – junto com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa - das Novas Cartas Portuguesas, de 1972, que apresentou ao mundo os horrores da ditadura e da colonização, livro que ganhou o mundo. Elas ficaram internacionalmente conhecidas como “as três Marias”. 

Vou comentar apenas as mesas a que assisti e uma da qual participei, como debatedora, na Casa do Desejo, alugada por iniciativa de Eduardo Lacerda, editor da Patuá, com quem publiquei o meu último romance, em 2017, intitulado “O indizível sentido do amor”. A maioria das casas foi alugada por editoras pequenas, independentes, que se cotizaram e compartilharam o espaço para discussões e venda de livros.

Foto: da página Casa do Desejo no facebook

“Amada vida” foi o nome da mesa composta por Djamila Ribeiro e Selva Almada, cujo debate foi aberto com performance de Bell Puã, artista pernambucana. Feminista negra com uma notável facilidade de expressão, Djamila falou sobre a violência contra a mulher negra e a literatura de resistência. Selva Almada, jornalista e escritora argentina, é autora do livro “Garotas mortas”, que narra a história de três assassinatos de mulheres no interior daquele país, em épocas diferentes, cuja autoria nunca foi conhecida. O que os crimes têm em comum é o fato de todas as mulheres terem sido mortas em casa, o que põe em dúvida a ideia de que o perigo está na rua, como secularmente vem sendo ensinado às mulheres. Para ela, faltou uma vontade real, por parte das autoridades, de desvendar o mistério dos crimes.

Djamila Ribeiro, intelectual e feminista negra

Selva Almada, jornalista e escritora argentina, autora de Garotas mortas

“Poeta na torre de capim”, com Lígia Ferreira e Ricardo Domeneck, foi para mim uma surpresa, na programação oficial. Desconhecia o grau e a extensão da importância do poeta Luiz Gama, único escritor que foi escravo, vendido pelo pai aos dez anos de idade. Gama deixou um legado notável e diversificado – entre poemas críticos, satíricos e matérias jornalísticas - além de ter inaugurado as formulações do que viria a ser chamado de “causa negra”. Foi um abolicionista importante, pioneiro na luta pelos direitos civis.
“Obscena, de tão lúcida”, com Juliano Garcia Pessanha e a moçambicana/portuguesa Isabela Figueiredo, autora de “Gorda” e “Cadernos de memórias coloniais”, foi outra mesa atraente. Irreverente, expansiva e bem-humorada, Isabela fez brincadeiras e falou longamente sobre seus livros, especialmente o de memórias, impressionante obra que conta a experiência da autora em Moçambique, sua terra natal, no período da descolonização, com a queda da ditadura portuguesa e a independência de Moçambique. Filha de portugueses colonialistas, teve dificuldades em descobrir e construir sua real identidade, o tempo todo em conflito com as duas situações: a dos pais e seus conterrâneos, que depois da queda da ditadura foram hostilizados e alguns literalmente massacrados, e a dos moçambicanos, que tampouco a consideravam uma compatriota.
Da riquíssima oferta de temas da programação paralela, assisti a um debate e a um longo e belo depoimento.
Desde o início da Festa, eu esperava com ansiedade a “Mesa sobre a maldade”, tema que me interessa especialmente, na Casa de Não Ficção Época & Vogue, com as escritoras Selva Amada, já citada, a francesa-marroquina Leila Slimani, autora do maravilhoso e surpreendente “Canção de ninar”, cuja personagem principal é uma babá, e a Dra. Ana Beatriz Barbosa e Silva, psiquiatra e psicanalista, conhecida por escrever sobre temas complexos em linguagem acessível ao grande público. Slimani falou em francês, com tradução simultânea, sobre o desprezo pelo corpo das mulheres e a universalidade do machismo, que, para ela, é “inversamente proporcional à universalidade do feminismo”. “No Marrocos – declarou - “o corpo da mulher não é dela e a virgindade é sacralizada. São seiscentos abortos por dia”. Ainda de acordo com a escritora, que citou Simone de Beauvoir, nós, mulheres de todo o mundo, temos uma experiência comum, mas ainda não conseguimos nos organizar. 

Leila Slimani e eu

Selva Almada falou sobre os problemas políticos que enfrentou em seu país depois da publicação de “Garotas mortas”. Várias escolas compraram exemplares da obra, mas um senador conservador chegou a apresentar um projeto de lei proibindo sua comercialização. A escritora foi alvo de ameaças e enfrentou forte oposição de alguns setores. Felizmente, o projeto não foi aprovado, o que pôs fim à polêmica.
Quem recebeu o maior número de perguntas foi a Dra. Ana Beatriz, provavelmente por ser mais conhecida pela plateia, que escutava o debate dependurado nas janelas, na rua, pois a sala estava superlotada. A especialista falou sobre o significado de sociopatia e como muitos políticos, estrangeiros e brasileiros, apresentam fortes traços de comportamento sociopático. Carismática e vivaz, contou um episódio que arrancou risos da plateia. Ela ficou encarregada de elaborar o laudo pericial do criminoso que recebeu o nome de “maníaco do parque”. No primeiro encontro que tiveram, na penitenciária, na companhia de dois policiais, ele lhe sugeriu que ordenasse a saída deles, pois “assegurava que nada lhe aconteceria”. Uma bem-humorada resposta resolveu o impasse, pois Ana Beatriz lhe disse que, sendo portadora de TOC e tendo feito todas as perícias de sua vida com dois policiais, se mudasse alguma coisa seria incapaz de realizar o trabalho. Sem saída, o rapaz ficou calado. 

Passando por acaso por uma rua, encontrei a escritora Carola Saavedra na porta da Casa Bondelê, onde daria, logo em seguida, um longo depoimento a Anna Monteiro, entrevistadora experiente e conhecedora de sua obra. Resolvi entrar e participar da atividade, que foi uma das mais atraentes da FLIP. A escritora falou sobre o seu novo romance, “Com armas sonolentas”, cujo título foi retirado de um poema de Sóror Juana Inés de la Cruz. O livro, polifônico, conta a história de três mulheres que vivenciaram o exílio e o abandono, o desencontro de idiomas e de lugares. Surpreendeu-me a fala de Carola, muito intensa e emocionada. Uma apresentação inesquecível, para mim.

Carola Saavedra, autora de “Com armas sonolentas”, durante seu depoimento

Na Casa do Desejo, participei, como debatedora convidada, da mesa intitulada “Paralelos entre o golpe de 1964 e 2016: o papel da arte na resistência”, com os jovens escritores Rodrigues Novaes de Almeida, autor do livro “Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos”,  e editor da revista Gueto; Wilson Alves Bezerra, autor de “O pau do Brasil” (poemas) e a ilustradora Sylvia Soares,  que lançou o livro “Às vezes as pessoas não vão com a minha cara”, contendo seus desenhos das personagens do golpe.

Na mesa da Casa do Desejo. Quem fala é Rodrigo Novaes de Almeida

Foi a minha primeira apresentação na Festa, e valeu a pena. A sala era pequena e por isso não dispunha de muitos lugares, mas estava lotada e ninguém saiu durante a discussão. Rodrigo Novaes de Almeida falou, emocionado, sobre a situação atual do país e as perdas sofridas em diversas áreas. Wilson Bezerra leu alguns poemas de seu livro e Sylvia Soares contou que os desenhos de sua obra foram feitos durante o período que antecedeu à saída da ex-presidenta Dilma Rousseff.

Com os debatedores na mesa da Casa do Desejo.

Falei sobre “O indizível sentido do amor", cujos temas centrais são morte, perdas, luto, cortes nas trajetórias pessoais e ditadura militar. Contei resumidamente a história do meu marido, ex-preso político, que morreu em 2012, e como sua vida foi afetada pelas torturas a que foi submetido e as perseguições que sofreu. Senti um grande interesse do público pelo tema.


Mariana Basílio, que lançou Tríptico Vital e eu, na Casa do Desejo.


Por último, gostaria de acrescentar que o título dessa crônica, “A alma encantadora da FLIP”, faz clara alusão ao livro “A alma encantadora das ruas”, do jornalista e escritor João do Rio, o criador da grande-reportagem no jornalismo brasileiro, de quem sou grande admiradora. Tomando como base os homenageados da Festa em 2017 e 2018, respectivamente Lima Barreto e Hilda Hilst, deixo aqui uma sugestão: por que não homenagear também João do Rio, que revolucionou o jornalismo no país, cronista formidável, que escrevia com as vísceras? Fica aqui a ideia, na esperança de que algum dos organizadores da FLIP dela tome conhecimento.






Rosângela Vieira Rocha é escritora, professora aposentada do Curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, jornalista e advogada. Tem doze livros publicados, para adultos e público infantojuvenil. Seu último romance, “O indizível sentido do amor”, foi publicado pela editora Patuá, em 2017.





quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Borboleta - a menina que lia poesia, de Chris Herrmann, resenha de Solange Firmino




Tentando desvelar os tons...
Por Solange Firmino


“Borboleta - a menina que lia poesia”, romance de estreia de Chris Herrmann, que resolveu se aventurar pelo campo fértil do gênero, é lúcido e elegante. E Maria Rosa, a borboleta-poeta, pseudônimo e alter ego da autora, é bastante empenhada em utilizar as palavras. Talvez por que as mãos que deram vida à personagem tenham sido as de uma experiente poeta e haicaísta.

A autora não quis fazer uma interpretação crua da vida, mas mostrou sua personagem como uma borboleta nascida na Floresta Amazônica, cujos pais morreram e que descobriu sua doença em uma casa para crianças sem lar. Enquanto a família se desfez na miséria, Maria Rosa se alimentou de ‘sonhos e letras’.

Para a pergunta “com quantos tons se retoca a vida de uma borboleta?” a autora respondeu dividindo o livro em oito capítulos coloridos, nomeados tanto de acordo com a metamorfose de uma borboleta biológica, como de acordo com virtudes e valores humanos. Então temos como exemplos, “Do ovo à luz”, “O amor”, “A gentileza”. Quem puder ter o livro em mãos, vai poder conferir as fotos das borboletas coloridas nos capítulos, o sumário, a capa, tudo lindo.

Sabe aquele pensamento, “quando os olhos olham com amor, o pigmeu é gigante”?; pois é, a borboleta-poeta acha isso, que “o belo pode existir no feio quando captado pelo olhar da poesia”. E afirma a importância da poesia para o sentido da vida. Gosta não apenas da poesia escrita, e sim de toda a poesia que chega até ela, como a pintura, a escultura, a dança, a música, etc. Sua realidade ficaria mais pobre sem poesia. Assim, ela vê poesia nos cabelos que caem, no cuidado das enfermeiras, no médico...

"Humildade,
um pequeno gesto imenso
de humanidade
encanta até as borboletas."

É sabido que a personagem está doente. No seu “casulo maior” chamado hospital, ela escreve os próprios poemas, e lê outros para melhorar os seus, enquanto está internada, fazendo lembrar o poeta Manuel Bandeira, tuberculoso e sempre em observação, mas a vida toda poeta. Internada, a borboleta começa a sentir a poesia/adeus dentro de si.

"Talvez haja um adeus que mora dentro da gente aqui no casulo maior, mas ele não se pronuncia, não se explica. É um nada que se engasga na garganta da gente e que é, ao mesmo tempo, necessário..."



Como a poesia serve para elaborar nossas incompletudes? Como se estivesse lendo a obra “O último poema”, de Manuel Bandeira, (Assim eu quereria o meu último poema./Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais./Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas...). A tendência à melancolia foi fundamental em todo o trabalho do poeta, que sempre achou que ia morrer cedo de tuberculose, mas acabou morrendo aos 82 anos. O poeta descreveu o “mau destino” no poema “Epígrafe” (Sou bem-nascido./ Menino,/Fui, como os demais, feliz./Depois, veio o mau destino/E fez de mim o que quis...)

O mau destino de Maria Rosa foi a metamorfose. Assim como nem todos estão preparados para morrer, ela não estava preparada para a revolução que a metamorfose provocaria em seu corpo:

"Metamorfose
a revolução anônima
que ninguém me perguntou
se eu estava preparada
nem se eu a desejava"

No caso, assim como o poeta Manuel Bandeira, a borboleta-poeta também sofre de uma doença crônica e compõe versos, digamos, de forma terapêutica. A jornada (espiritual) do poeta é criar, e nunca está pronto para partir. Como compreender que a alma é delicada, senão com a borboleta?

"O espírito
poderá voar para onde
nossos olhos
nunca alcançaram.
mas não se esqueça
de deixar os pesos para trás.
só as coisas pequenas
cabem na leveza da alma."

O poema abaixo enaltece o aparentemente trivial, e capta o instante do universo exterior em que a borboleta-poeta encontra-se, muitas vezes, desejosa de uma delicadeza. Mas dessa relação social, ao apurarmos a percepção da necessidade de transformar a si mesma e o outro, surge o estímulo que emana Luz como instrumento de reforma interpessoal. E as pesquisas indicam que a gentileza faz bem à saúde!

"Gentileza.
Semente que se planta
dentro e fora da gente,
mas que todos colhem,
tão discreta e suave
acalentando momentos...
Que na sua grandiosidade
não passe despercebida."

É uma leitura nada inocente por trás da ilusória fragilidade dos versos. A borboleta-poeta reverencia uma linguagem enxuta, da poesia extraída das circunstâncias, do mundo que a cerca. Trata-se de um momento reflexivo, para colocar em ordem os pensamentos e para escutar a poesia e o ciclo da natureza:

"A poesia de outono
Começa na folha que cai,
mas não para por aí.
Ela continua na folha
que ainda está para cair."

Como uma criança que acabou de dominar as palavras, a borboleta brinca, vê que pode mexer com as sílabas, faz delas traquinagens. As borboletas têm licença poética para tal...
Há um jogo de linguagens em toda a obra. O poema “Democracia” (mais abaixo), brinca com as palavras plural e singular.
Aqui, as palavras pesar/leveza, com o equilíbrio da asa da borboleta, e pesar da melancolia pela sua doença:

"O equilíbrio
da borboleta
não se mede
pelo tamanho
de suas asas,
mas pela leveza
que elas carregam,
a pesar de tudo
Então:
duas levezas
e uma medida."



O filósofo Jean-Jacques Rousseau acreditava que o homem tinha duas vontades: uma enquanto indivíduo, outra enquanto membro de um grupo social. Como indivíduo, é tentado a querer o interesse individual; como homem social, procura o interesse geral. Só se pode falar em Vontade geral quando, apesar das divergências entre os componentes do corpo social e das discussões que se devem travar entre eles, exista um ou vários elementos comuns capazes de movê-los na mesma direção. Um dos grandes problemas de vários países é não entender essas diferenças. Aqui, a borboleta-poeta certamente não falava da Vontade de Rousseau, mas a liberdade com que ela se desprendeu da realidade nos três últimos versos foi tão grande que me fez lembrar imediatamente de Rousseau:

"A prática
não depende da teoria,
mas da vontade.
Hoje pratiquei a pequenez
Das coisas sem tempo
e suas intensidades."

Outro filósofo de quem lembrei foi Epicteto, uma das vozes mais influentes da Antiguidade, que viveu nos primórdios da Era Cristã, de 40 a 125; para quem o básico da vida feliz é aceitar as coisas como elas são. Revoltar-se contra os fatos não os altera, e ainda traz uma dose desnecessária de tormento. Pois a borboleta-poeta era meio filósofa nesse ponto, ela sabia que:

"Não podemos estar sempre alegres ou tristes. Não há uma só felicidade, nem um só tormendo. Há uma vida."

"Sei que não viverei muito tempo, mas o tempo que ainda me resta, gostaria de sentir mais a essência da vida e menos a fragilidade do corpo. Meu corpo não acompanha a vida que canta, viaja, sonha, dança rock e bumba meu boi na minha mente."
Todos sabem que temos o tempo contado de vida, a borboleta principalmente, mas não aceitava tão facilmente. As pessoas que estão em tratamento aproveitam mais a essência da vida e o presente, quando passam por experiências relacionadas às doenças crônicas. Em seu tormento, a ‘borboleta-filósofa’ aderiu também ao carpe diem, frase em latim de um poema de Horácio (poeta romano da Antiguidade), popularmente traduzida como “aproveite o momento”. Horácio já trazia uma filosofia mais epicurista em seus poemas, mas o tema do carpe diem, brevidade da vida e busca da tranquilidade ficaram marcados até hoje.

"Pouco tempo?
Abaixo o tempo cronológico!
viva o tempo das intensidades!"

Já que estamos falando de Filosofia, continuamos com um conceito aristotélico, que pode explicar o sentido do poema abaixo. Segundo Aristóteles, o ser humano é um animal político. No caso, temos a alegoria das borboletas. O que importa aqui é o caráter comunitário dessa filosofia, o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes nessa convivência, como justiça e amizade, essenciais para a comunidade da pólis (no caso, do jardim singular).

"Democracia
- é preciso sair do casulo,
pois que há uma porção
de outras borboletas
de todas as cores
que ao se descobrirem plurais
tornam-se fortes no jardim singular."

Mas a comunidade da pólis não é apenas formada por muitos homens/ou por muitas borboletas, mas também pela diversidade que eles apresentam. A diversidade cultural, o multiculturalismo, a identidade negra, as relações raciais ou que nomes tenham, são totalmente ocultadas pelo espaço escolar. Esses temas somente são trabalhados na semana do dia 20 de novembro, nas comemorações da chamada “Consciência Negra”.

O ser humano vive enclausurado em si mesmo, a diversidade que vai ao encontro do amor e nos transforma, reflete no olhar, não no espelho. Quando a maioria só conhece o que é espelho, o conhecimento surge como um artifício para sair do estado de ingenuidade. Para a borboleta-poeta, aprender com os erros era fundamental. Ela então ensinou às crianças preconceituosas que a beleza estava na diversidade, então contou o mito de Narciso quando houve um caso de desrespeito.

"Despreconceito
É a compreensão do outro na gente."

"Tolerância
são nossos pés pesados
marcando por caminhos
desconhecidos de nós.
São nossas mãos
criando trilhas e
encurtando espaços
em direção ao outro."

A borboleta, mesmo doente e cansada, fez viagens, passeou pelas tradições humanas sem sentido, viu crianças que não brincavam com outras no recreio porque estavam com seus celulares. Nos seus voos diários, visitou cidades como a Cuiabá de Manoel de Barros; Recife de João Cabral e Manuel Bandeira; Maranhão de Ferreira Gullar; Paraíba de Augusto dos Anjos e dezenas de outras.

Reconhecer-se perdida está longe de implicar a submissão ao medo, então, a borboleta-poeta se camufla na própria linguagem, fazendo dela um lugar onde se manifesta. Camufla-se quando se manifesta, mas ao mesmo tempo se revela no ato de se esconder, desvelando um dos mais belos poemas do livro:

"O medo e as asas
O medo é um ser invisível,
feito de um material pesado
e olhos cabisbaixos.
as asas, visíveis ou não,
são tão leves
que abraçam um céu
com olhos de plumas
que apontam rumos."


Falando em rumos, o homem não pode viver sem procurar pelos seus próprios caminhos, ou seja, em algum momento, a maioria busca pelo significado do sagrado. Como disse Ferreira Gullar “a vida só consome/o que a alimenta”.  A borboleta-poeta também alcançou sua experiência metafísica, e entendeu que os contrários se coincidem, a vida devora, mas também presenteia:

"Então, fiquei pensando que, para mim, só existe uma forma de presente: o hoje e agora, regalo que nem sempre enxergamos."

E quando sua experiência muda para algo totalmente significativo, no meu entendimento, para algo de valor para a borboleta também, ela entende tudo. Mesmo com pouco tempo, ela compreendeu o quanto ele foi suficiente, pelas amizades que fizera, por tudo o que conquistara. É quase um elemento na estrutura da consciência humana, um modo de ser no mundo. Essa é a borboleta-poeta mais sábia que existiu. Desconfio que era filósofa.

"O presente
chegou embrulhado de pouco tempo,
mas sua consistência era suficiente
para surpreender a borboleta
com luzes e cores
de todos os prismas"

Deparamo-nos finalmente com a poeta-borboleta, digo primeiramente poeta, depois borboleta, que sente a mutação da vida pulsando, a transformação em processo, buscando saber cada vez mais e melhor, argumentadora da sua expressão poética e da capacidade de concentrar o máximo da vida nos mínimos instantes de poesia. E não há palavras que possam exprimir esse sentimento:

"Aprendizado,
aprendi que nunca terminei
de apreender a vida.
Que ela seja intensa
enquanto viva."



~
Solange Firmino é carioca, professora do Ensino Fundamental
e de Língua Portuguesa, cronista e poeta. Publicou livros de poemas
e tem participação em diversas coletâneas de poesia brasileira.

Instantes, poemas de Luciano Lopes



Instantes

de Luciano Lopes


amadurecer, desconfio
é aceitar as incompletudes
desconfio ainda
que a paz interna
vamos ter
que negociar
com um sobrenatural
cada qual
com o seu


*

abandonaram-me
as bruxas e as fadas
e condenado a realidade
fui ver se ainda entendia
os desenhos das nuvens
e não surpreso
meus olhos
não suportaram
nem a claridade


*

me encontro
no momento
em que 
meus olhos
se perdem


*

quando 
o que resta 
é o silêncio 
foi feito 
o que deveria
ter sido 
desde o início

*

desconheço todas
as partes de mim
passo os dias
em encontros e desencontros
é a solidão do existir
a solidão tem braços 
que não têm a mecânica de abraçar

*

a hora 
de começar 
o grito
dói mais 
que o grito

*

lá no fundo do coração
nunca mais visitei





Luciano Lopes (Brasília/DF). Poeta e servidor público. Tem poemas publicados em alguns blogues, na Germina – Revista de Literatura e Arte e edita o Quando você me olha, eu existo tanto!. Publicou  Trabalho de Carpintaria, com o pseudônimo de Lupi Lobo (produção independente).



segunda-feira, 30 de julho de 2018

Cinco Poemas de Sílvia Palaia


Foto: Maria Doval Ballet


A poesia de Silvia Palaia


Silêncios

transbordada de silêncios estico as lembranças e escondo a tristeza embaixo do meu travesseiro bebo o elixir da esperança apanho meu sorriso na gaveta e guardo na bolsa amanheço. seis horas e quatro minutos.

*

Jura de Amor Eterno

prometo me manter descabelada de alegria prometo fingir que você não é a companhia que eu mais gosto prometo fingir que você não me faz falta. prometo não lhe contar que penso em você, antes de dormir prometo não lhe contar que penso em você, antes de acordar prometo enamorar-te enquanto enrolar seus dedos em meus cachos. prometo enamorar-te enquanto coubermos, sem transbordar.

*

O tempo

manter no tempo os sussurros parar o minuto da alegria compartilhada olhar para o ponteiro, do velho relógio da parede, e ser cúmplice do tic-tac silencioso, da madrugada ardente, dos beijos trocados em segredo da noite esquecida. do copo de leite. do pano cobrindo o fogão. do amor desembrulhando. da vida da gente.

*

La Llorona

vem, a porta está aberta vem, a mesa está arrumada: dois pratos. vem, deixei a melhor cadeira pra você. vem, fiz sua comida predileta (sem cebola) vem, o vinho é tinto, encorpado na temperatura que você gosta vem, chavela canta la llorona a voz é grave e melancólica (compramos o cd no méxico, lembra?) a casa azul: quase casamos por lá eram tantas cores... vem, o aroma está ótimo você sentirá do portão: cravo e toque de manjericão vem, o número é o mesmo a senha: abraço assim que o portão abrir já sabes o que fazer em frente: são dezenove passos vem, meu amor, depois a comida esfria a cantora cansa o vinho estraga vem, meu amor a vida não espera.

*

Maio

era noite
num maio qualquer
depois em julho
me alimentou de ternura
acariciou meus talentos
embebedou meus temores
e foi
disse que não cabia nos meus abraços
em julho
me envolveu com seu casaco
de veludo
matou meu frio
e foi
disse que seu tempo era curto
pros meus beijos longos.
meu corpo bastardo
apertado na cama,
do quarto dos fundos,
que me reservara
e minha alma sufocada
pela falta de luz
no corredor de teus olhos.
abri a janela
em setembro
e deixei a primavera entrar
desde então
não cabes no meu quarto
da frente,
nem em minha cama macia
onde deita um coração
encantado
que tem costurado seu sonho
ao meu.

*

Epílogo

I
hoje me olhas
com ar de desprezo
esquece do amor,
esconde o desejo
II
no meio da noite
na mesa de canto
o nosso lugar
te olho de lado
me chama pra perto
me faz suspirar
III
parado no poste
me olhava partir
gritou o meu nome
voltei apressada
é noite, morena
me leva pra casa.
IV
e nas noites sombrias
te espero calada
no sonho te vejo
te toco e te beijo
desperto assustada
e na cama vazia
quem tanto eu queria
não está ao meu lado.





Sílvia Palaia é meu nome. Tenho 54 anos de intensidade e rebeldia. Sou socióloga e historiadora – com especialização em Historiografia e Cultura. Minha vida quase todo tempo foi pra explicar. Minha fala é minha ferramenta de luta e de amor. Escrevo porque é o que faz sentido na minha vida. É minha outra fala. A da alma em estado bruto. Também sou mãe do Pedro e do André e mulher do Heitor – companheiro da maturidade, da arte e da vida.  


terça-feira, 17 de julho de 2018

Borboleta - a menina que lia poesia, resenha crítica por Leila Míccolis






ARES, MARES E ROCHEDOS

 por Leila Míccolis



“Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses”.

Rubem Alves


Não é de hoje que a autora é fascinada por borboletas: em 2009 tive o prazer de prefaciar o livro de Chris Herrmann intitulado Voos de Borboleta – haicais leves, como um bater de asas; no entanto, o adejo deste inseto colorido em Borboleta – a menina que lia poesia é completamente outro: pertence a alguém que, presa em um casulo fatal, vive extraindo do mundo das leituras a sua força, coragem e determinação diárias.



Por não conter diálogos, a leitura deste livro podia tornar-se cansativa, logo nas primeiras páginas. Porém, com delicadeza e sensibilidade, a autora consegue nos prender até o final, e acompanhamos com grande interesse o crescimento interior de Maria Rosa, uma jovem que vai da mudez à fala, do isolamento à plena interação com as outras meninas-moças internadas no mesmo local hospitalar que ela, capaz de viver cada dia como se fosse o primeiro e o último de sua existência e de celebrar a vida da forma mais intensa possível dentro das circunstâncias limitadoras de seu precário estado de saúde. Maria Rosa nos lembra, a todo instante, o inestimável valor da poesia, dos livros, da solidariedade, da beleza, do diálogo, da amizade e do amor, sutilmente enfatizando a ideia de que, em nossa travessia, o mais importante é a própria caminhada, o modo como a percorremos.

 


Um romance que se transforma simultaneamente em um livro de viagens, com a jovem borboleteando os jardins da cidade natal de seus autores preferidos, para descrever as diferentes cores locais; em reflexões, sob o formato de poesia, fazendo com que questionemos comportamentos cotidianos: “Despreconceito / é a compreensão do outro na gente”; e também se apresenta como um diário, oferecendo ao leitor a intimidade de uma adolescente que, apesar da adversidade, vai metamorfoseando-se e desabrochando-se a cada novo aprendizado, sem perder sua inocência e pureza. Uma literatura polimorfa, portanto, por conter em si múltiplas propostas estéticas.

Que reverbere, em nós, a principal mensagem da obra, alicerçada na impermanência e na transitoriedade da vida, visando não o hedonismo imediatista tão comum em nossa época, mas sim a percepção de cada minuto como uma dádiva em prol de nosso aprimoramento ético, moral, intelectual, mental e físico. 




A personagem principal ama as borboletas porque identifica-se com seus voos; mas eu a vejo também nos mares, não como uma arraia-borboleta, mas como uma determinada espécie de ostra, a princípio fechada em sua concha, mas que, com o passar do tempo, fixa-se a uma rocha fazendo dela o seu sustentáculo – Maria Rosa e Rocha –, transformando sua dor em pérola (pois não há pérola sem sofrimento), e oferecendo ao mundo a mais preciosa joia gerada em seu âmago, em seu íntimo, em suas entranhas. 



* Leila Míccolis é Mestra, Doutora e com Pós-Doutorado em Letras/Teoria Literária (UFRJ), pesquisadora, escritora de livros, TV, teatro e cinema.


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