terça-feira, 14 de agosto de 2018

Crônica sobre a FLIP 2018 por Rosângela Vieira Rocha



A ALMA ENCANTADORA DA FLIP


por Rosângela Vieira Rocha



A 16ª FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – realizou-se no período de 25 a 29/07. Foram cinco dias inteiramente dedicados à literatura, sua principal atração, e às artes de modo geral: música, teatro, ópera, performances, ilustrações. Reside aí a diferença essencial entre a FLIP de 2018 e as anteriores. A Festa deste ano integrou, de maneira mais forte e democrática, várias formas de expressão artística.



As mudanças introduzidas no ano passado pela curadora Josélia Aguiar, jornalista baiana radicada em São Paulo, que desde 2017 desempenha a função, mantiveram-se e se expandiram. Sob sua curadoria, a Festa foi repensada, redesenhada e adquiriu novo formato. Além da programação oficial, que não se realiza mais dentro da Igreja Matriz e sim sob um toldo – ao lado do toldo onde fica o telão com setecentos lugares, em que a entrada é gratuita – foi oferecido um elenco de atividades paralelas nas vinte e duas casas alugadas pelas editoras (em 2017 havia sete). A paridade de gênero do ano anterior foi mantida – dezesseis escritores e dezessete escritoras – e registrou-se a participação crescente de autores negros, correspondentes a 30% do total de convidados.

Homenageando Hilda Hilst, poeta cuja obra só foi reconhecida após sua morte e que nos últimos anos vem sendo bastante estudada nas universidades, a FLIP surpreendeu pela riqueza da programação, tornando difícil a escolha do que assistir. Temas recorrentes na obra de Hilda, como amor, morte, sexo, finitude, Deus, nortearam as programações – tanto a oficial como a paralela – mas também buscaram atender à pauta atual, privilegiando o feminismo, a violência contra as mulheres, a discriminação racial, a imigração, a homofobia.
Na noite de abertura, a atriz Fernanda Montenegro interpretou durante uma hora texto de autoria da homenageada. Em seguida, houve a apresentação de uma ópera da compositora, musicista e artista multimídia Jocy de Oliveira.  

No dia seguinte, iniciou-se, entre os participantes que enchiam as pacatas e bonitas ruas da cidade antiga, a procura quase febril da programação das casas, que apresentaram, ao mesmo tempo, mesas de debates interessantes para todos os gostos.
Ao contrário de 2017, em que fui sozinha a Paraty realizar o sonho antigo de participar da Festa, dessa vez estava com um grupo de escritoras amigas de Brasília, o que tornou tudo mais divertido e animado. No ano passado, não conhecia a cidade e fiquei numa pousada longe do Centro Histórico, onde se realizam as atividades, motivo de transtorno para mim, que tenho problemas nos joelhos. Caminhar pelas ruas de Paraty, cheias de desníveis, não é fácil. Depois da experiência de 2017, estabeleci como prioridade, na escolha do local de hospedagem, a localização. E dei sorte, pois reservamos, com bastante antecedência, uma pousada em frente ao toldo do telão gratuito. 

 Quanto à programação, estabeleci dois critérios de seleção: o tema, em primeiro lugar, e a procedência dos debatedores, pois é muito mais difícil ter acesso aos escritores estrangeiros. Tive de abrir mão de ouvir celebridades brasileiras cujas opiniões me interessam e inclusive das quais compartilho, em alguns casos, mas é impossível escolher sem perder algo no caminho.
Gostaria muito de ter assistido à mesa “Barco com asas”, do programa oficial, com importantes debatedoras, entre as quais Maria Teresa Horta, cuja participação não foi presencial e sim por vídeo gravado. Uma das escritoras portuguesas mais importantes da atualidade, autora – junto com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa - das Novas Cartas Portuguesas, de 1972, que apresentou ao mundo os horrores da ditadura e da colonização, livro que ganhou o mundo. Elas ficaram internacionalmente conhecidas como “as três Marias”. 

Vou comentar apenas as mesas a que assisti e uma da qual participei, como debatedora, na Casa do Desejo, alugada por iniciativa de Eduardo Lacerda, editor da Patuá, com quem publiquei o meu último romance, em 2017, intitulado “O indizível sentido do amor”. A maioria das casas foi alugada por editoras pequenas, independentes, que se cotizaram e compartilharam o espaço para discussões e venda de livros.

Foto: da página Casa do Desejo no facebook

“Amada vida” foi o nome da mesa composta por Djamila Ribeiro e Selva Almada, cujo debate foi aberto com performance de Bell Puã, artista pernambucana. Feminista negra com uma notável facilidade de expressão, Djamila falou sobre a violência contra a mulher negra e a literatura de resistência. Selva Almada, jornalista e escritora argentina, é autora do livro “Garotas mortas”, que narra a história de três assassinatos de mulheres no interior daquele país, em épocas diferentes, cuja autoria nunca foi conhecida. O que os crimes têm em comum é o fato de todas as mulheres terem sido mortas em casa, o que põe em dúvida a ideia de que o perigo está na rua, como secularmente vem sendo ensinado às mulheres. Para ela, faltou uma vontade real, por parte das autoridades, de desvendar o mistério dos crimes.

Djamila Ribeiro, intelectual e feminista negra

Selva Almada, jornalista e escritora argentina, autora de Garotas mortas

“Poeta na torre de capim”, com Lígia Ferreira e Ricardo Domeneck, foi para mim uma surpresa, na programação oficial. Desconhecia o grau e a extensão da importância do poeta Luiz Gama, único escritor que foi escravo, vendido pelo pai aos dez anos de idade. Gama deixou um legado notável e diversificado – entre poemas críticos, satíricos e matérias jornalísticas - além de ter inaugurado as formulações do que viria a ser chamado de “causa negra”. Foi um abolicionista importante, pioneiro na luta pelos direitos civis.
“Obscena, de tão lúcida”, com Juliano Garcia Pessanha e a moçambicana/portuguesa Isabela Figueiredo, autora de “Gorda” e “Cadernos de memórias coloniais”, foi outra mesa atraente. Irreverente, expansiva e bem-humorada, Isabela fez brincadeiras e falou longamente sobre seus livros, especialmente o de memórias, impressionante obra que conta a experiência da autora em Moçambique, sua terra natal, no período da descolonização, com a queda da ditadura portuguesa e a independência de Moçambique. Filha de portugueses colonialistas, teve dificuldades em descobrir e construir sua real identidade, o tempo todo em conflito com as duas situações: a dos pais e seus conterrâneos, que depois da queda da ditadura foram hostilizados e alguns literalmente massacrados, e a dos moçambicanos, que tampouco a consideravam uma compatriota.
Da riquíssima oferta de temas da programação paralela, assisti a um debate e a um longo e belo depoimento.
Desde o início da Festa, eu esperava com ansiedade a “Mesa sobre a maldade”, tema que me interessa especialmente, na Casa de Não Ficção Época & Vogue, com as escritoras Selva Amada, já citada, a francesa-marroquina Leila Slimani, autora do maravilhoso e surpreendente “Canção de ninar”, cuja personagem principal é uma babá, e a Dra. Ana Beatriz Barbosa e Silva, psiquiatra e psicanalista, conhecida por escrever sobre temas complexos em linguagem acessível ao grande público. Slimani falou em francês, com tradução simultânea, sobre o desprezo pelo corpo das mulheres e a universalidade do machismo, que, para ela, é “inversamente proporcional à universalidade do feminismo”. “No Marrocos – declarou - “o corpo da mulher não é dela e a virgindade é sacralizada. São seiscentos abortos por dia”. Ainda de acordo com a escritora, que citou Simone de Beauvoir, nós, mulheres de todo o mundo, temos uma experiência comum, mas ainda não conseguimos nos organizar. 

Leila Slimani e eu

Selva Almada falou sobre os problemas políticos que enfrentou em seu país depois da publicação de “Garotas mortas”. Várias escolas compraram exemplares da obra, mas um senador conservador chegou a apresentar um projeto de lei proibindo sua comercialização. A escritora foi alvo de ameaças e enfrentou forte oposição de alguns setores. Felizmente, o projeto não foi aprovado, o que pôs fim à polêmica.
Quem recebeu o maior número de perguntas foi a Dra. Ana Beatriz, provavelmente por ser mais conhecida pela plateia, que escutava o debate dependurado nas janelas, na rua, pois a sala estava superlotada. A especialista falou sobre o significado de sociopatia e como muitos políticos, estrangeiros e brasileiros, apresentam fortes traços de comportamento sociopático. Carismática e vivaz, contou um episódio que arrancou risos da plateia. Ela ficou encarregada de elaborar o laudo pericial do criminoso que recebeu o nome de “maníaco do parque”. No primeiro encontro que tiveram, na penitenciária, na companhia de dois policiais, ele lhe sugeriu que ordenasse a saída deles, pois “assegurava que nada lhe aconteceria”. Uma bem-humorada resposta resolveu o impasse, pois Ana Beatriz lhe disse que, sendo portadora de TOC e tendo feito todas as perícias de sua vida com dois policiais, se mudasse alguma coisa seria incapaz de realizar o trabalho. Sem saída, o rapaz ficou calado. 

Passando por acaso por uma rua, encontrei a escritora Carola Saavedra na porta da Casa Bondelê, onde daria, logo em seguida, um longo depoimento a Anna Monteiro, entrevistadora experiente e conhecedora de sua obra. Resolvi entrar e participar da atividade, que foi uma das mais atraentes da FLIP. A escritora falou sobre o seu novo romance, “Com armas sonolentas”, cujo título foi retirado de um poema de Sóror Juana Inés de la Cruz. O livro, polifônico, conta a história de três mulheres que vivenciaram o exílio e o abandono, o desencontro de idiomas e de lugares. Surpreendeu-me a fala de Carola, muito intensa e emocionada. Uma apresentação inesquecível, para mim.

Carola Saavedra, autora de “Com armas sonolentas”, durante seu depoimento

Na Casa do Desejo, participei, como debatedora convidada, da mesa intitulada “Paralelos entre o golpe de 1964 e 2016: o papel da arte na resistência”, com os jovens escritores Rodrigues Novaes de Almeida, autor do livro “Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos”,  e editor da revista Gueto; Wilson Alves Bezerra, autor de “O pau do Brasil” (poemas) e a ilustradora Sylvia Soares,  que lançou o livro “Às vezes as pessoas não vão com a minha cara”, contendo seus desenhos das personagens do golpe.

Na mesa da Casa do Desejo. Quem fala é Rodrigo Novaes de Almeida

Foi a minha primeira apresentação na Festa, e valeu a pena. A sala era pequena e por isso não dispunha de muitos lugares, mas estava lotada e ninguém saiu durante a discussão. Rodrigo Novaes de Almeida falou, emocionado, sobre a situação atual do país e as perdas sofridas em diversas áreas. Wilson Bezerra leu alguns poemas de seu livro e Sylvia Soares contou que os desenhos de sua obra foram feitos durante o período que antecedeu à saída da ex-presidenta Dilma Rousseff.

Com os debatedores na mesa da Casa do Desejo.

Falei sobre “O indizível sentido do amor", cujos temas centrais são morte, perdas, luto, cortes nas trajetórias pessoais e ditadura militar. Contei resumidamente a história do meu marido, ex-preso político, que morreu em 2012, e como sua vida foi afetada pelas torturas a que foi submetido e as perseguições que sofreu. Senti um grande interesse do público pelo tema.


Mariana Basílio, que lançou Tríptico Vital e eu, na Casa do Desejo.


Por último, gostaria de acrescentar que o título dessa crônica, “A alma encantadora da FLIP”, faz clara alusão ao livro “A alma encantadora das ruas”, do jornalista e escritor João do Rio, o criador da grande-reportagem no jornalismo brasileiro, de quem sou grande admiradora. Tomando como base os homenageados da Festa em 2017 e 2018, respectivamente Lima Barreto e Hilda Hilst, deixo aqui uma sugestão: por que não homenagear também João do Rio, que revolucionou o jornalismo no país, cronista formidável, que escrevia com as vísceras? Fica aqui a ideia, na esperança de que algum dos organizadores da FLIP dela tome conhecimento.






Rosângela Vieira Rocha é escritora, professora aposentada do Curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB, jornalista e advogada. Tem doze livros publicados, para adultos e público infantojuvenil. Seu último romance, “O indizível sentido do amor”, foi publicado pela editora Patuá, em 2017.





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