A ALMA ENCANTADORA DA
FLIP
por Rosângela Vieira Rocha
A 16ª
FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty – realizou-se no período de 25 a
29/07. Foram cinco dias inteiramente dedicados à literatura, sua principal
atração, e às artes de modo geral: música, teatro, ópera, performances,
ilustrações. Reside aí a diferença essencial entre a FLIP de 2018 e as anteriores.
A Festa deste ano integrou, de maneira mais forte e democrática, várias formas
de expressão artística.
As mudanças
introduzidas no ano passado pela curadora Josélia Aguiar, jornalista baiana
radicada em São Paulo, que desde 2017 desempenha a função, mantiveram-se e se
expandiram. Sob sua curadoria, a Festa foi repensada, redesenhada e adquiriu
novo formato. Além da programação oficial, que não se realiza mais dentro da
Igreja Matriz e sim sob um toldo – ao lado do toldo onde fica o telão com setecentos
lugares, em que a entrada é gratuita – foi oferecido um elenco de atividades
paralelas nas vinte e duas casas alugadas pelas editoras (em 2017 havia sete).
A paridade de gênero do ano anterior foi mantida – dezesseis escritores e
dezessete escritoras – e registrou-se a participação crescente de autores
negros, correspondentes a 30% do total de convidados.
Homenageando Hilda
Hilst, poeta cuja obra só foi reconhecida após sua morte e que nos últimos anos
vem sendo bastante estudada nas universidades, a FLIP surpreendeu pela riqueza
da programação, tornando difícil a escolha do que assistir. Temas recorrentes
na obra de Hilda, como amor, morte, sexo, finitude, Deus, nortearam as
programações – tanto a oficial como a paralela – mas também buscaram atender à
pauta atual, privilegiando o feminismo, a violência contra as mulheres, a
discriminação racial, a imigração, a homofobia.
Na noite de abertura, a
atriz Fernanda Montenegro interpretou durante uma hora texto de autoria da
homenageada. Em seguida, houve a apresentação de uma ópera da compositora,
musicista e artista multimídia Jocy de Oliveira.
No dia seguinte, iniciou-se, entre os
participantes que enchiam as pacatas e bonitas ruas da cidade antiga, a procura
quase febril da programação das casas, que apresentaram, ao mesmo tempo, mesas
de debates interessantes para todos os gostos.
Ao contrário de 2017, em que fui
sozinha a Paraty realizar o sonho antigo de participar da Festa, dessa vez
estava com um grupo de escritoras amigas de Brasília, o que tornou tudo mais
divertido e animado. No ano passado, não conhecia a cidade e fiquei numa
pousada longe do Centro Histórico, onde se realizam as atividades, motivo de
transtorno para mim, que tenho problemas nos joelhos. Caminhar pelas ruas de
Paraty, cheias de desníveis, não é fácil. Depois da experiência de 2017,
estabeleci como prioridade, na escolha do local de hospedagem, a localização. E
dei sorte, pois reservamos, com bastante antecedência, uma pousada em frente ao
toldo do telão gratuito.
Quanto à programação, estabeleci dois
critérios de seleção: o tema, em primeiro lugar, e a procedência dos
debatedores, pois é muito mais difícil ter acesso aos escritores estrangeiros. Tive
de abrir mão de ouvir celebridades brasileiras cujas opiniões me interessam e
inclusive das quais compartilho, em alguns casos, mas é impossível escolher sem
perder algo no caminho.
Gostaria muito de ter assistido à
mesa “Barco com asas”, do programa oficial, com importantes debatedoras, entre
as quais Maria Teresa Horta, cuja participação não foi presencial e sim por
vídeo gravado. Uma das escritoras portuguesas mais importantes da atualidade, autora
– junto com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa - das Novas Cartas
Portuguesas, de 1972, que apresentou ao mundo os horrores da ditadura e da
colonização, livro que ganhou o mundo. Elas ficaram internacionalmente
conhecidas como “as três Marias”.
Vou comentar apenas as mesas a que
assisti e uma da qual participei, como debatedora, na Casa do Desejo, alugada
por iniciativa de Eduardo Lacerda, editor da Patuá, com quem publiquei o meu
último romance, em 2017, intitulado “O indizível sentido do amor”. A maioria
das casas foi alugada por editoras pequenas, independentes, que se cotizaram e
compartilharam o espaço para discussões e venda de livros.
Foto: da página Casa do Desejo no facebook |
“Amada vida” foi o nome da mesa composta por Djamila Ribeiro e Selva Almada, cujo debate foi aberto com performance de Bell Puã, artista pernambucana. Feminista negra com uma notável facilidade de expressão, Djamila falou sobre a violência contra a mulher negra e a literatura de resistência. Selva Almada, jornalista e escritora argentina, é autora do livro “Garotas mortas”, que narra a história de três assassinatos de mulheres no interior daquele país, em épocas diferentes, cuja autoria nunca foi conhecida. O que os crimes têm em comum é o fato de todas as mulheres terem sido mortas em casa, o que põe em dúvida a ideia de que o perigo está na rua, como secularmente vem sendo ensinado às mulheres. Para ela, faltou uma vontade real, por parte das autoridades, de desvendar o mistério dos crimes.
Djamila Ribeiro, intelectual e feminista negra |
“Poeta na torre de capim”, com Lígia
Ferreira e Ricardo Domeneck, foi para mim uma surpresa, na programação oficial.
Desconhecia o grau e a extensão da importância do poeta Luiz Gama, único
escritor que foi escravo, vendido pelo pai aos dez anos de idade. Gama deixou um
legado notável e diversificado – entre poemas críticos, satíricos e matérias
jornalísticas - além de ter inaugurado as formulações do que viria a ser
chamado de “causa negra”. Foi um abolicionista importante, pioneiro na luta
pelos direitos civis.
“Obscena, de tão lúcida”, com Juliano Garcia Pessanha e a
moçambicana/portuguesa Isabela Figueiredo, autora de “Gorda” e “Cadernos de
memórias coloniais”, foi outra mesa atraente. Irreverente, expansiva e
bem-humorada, Isabela fez brincadeiras e falou longamente sobre seus livros,
especialmente o de memórias, impressionante obra que conta a experiência da
autora em Moçambique, sua terra natal, no período da descolonização, com a
queda da ditadura portuguesa e a independência de Moçambique. Filha de
portugueses colonialistas, teve dificuldades em descobrir e construir sua real identidade,
o tempo todo em conflito com as duas situações: a dos pais e seus conterrâneos,
que depois da queda da ditadura foram hostilizados e alguns literalmente
massacrados, e a dos moçambicanos, que tampouco a consideravam uma compatriota.
Da
riquíssima oferta de temas da programação paralela, assisti a um debate e a um
longo e belo depoimento.
Desde
o início da Festa, eu esperava com ansiedade a “Mesa sobre a maldade”, tema que
me interessa especialmente, na Casa de Não Ficção Época & Vogue, com as
escritoras Selva Amada, já citada, a francesa-marroquina Leila Slimani, autora
do maravilhoso e surpreendente “Canção de ninar”, cuja personagem principal é
uma babá, e a Dra. Ana Beatriz Barbosa e Silva, psiquiatra e psicanalista,
conhecida por escrever sobre temas complexos em linguagem acessível ao grande
público. Slimani falou em francês, com tradução simultânea, sobre o desprezo
pelo corpo das mulheres e a universalidade do machismo, que, para ela, é
“inversamente proporcional à universalidade do feminismo”. “No Marrocos –
declarou - “o corpo da mulher não é dela e a virgindade é sacralizada. São
seiscentos abortos por dia”. Ainda de acordo com a escritora, que citou Simone
de Beauvoir, nós, mulheres de todo o mundo, temos uma experiência comum, mas
ainda não conseguimos nos organizar.
Leila Slimani e eu |
Selva
Almada falou sobre os problemas políticos que enfrentou em seu país depois da
publicação de “Garotas mortas”. Várias escolas compraram exemplares da obra,
mas um senador conservador chegou a apresentar um projeto de lei proibindo sua
comercialização. A escritora foi alvo de ameaças e enfrentou forte oposição de
alguns setores. Felizmente, o projeto não foi aprovado, o que pôs fim à
polêmica.
Quem
recebeu o maior número de perguntas foi a Dra. Ana Beatriz, provavelmente por
ser mais conhecida pela plateia, que escutava o debate dependurado nas janelas,
na rua, pois a sala estava superlotada. A especialista falou sobre o
significado de sociopatia e como muitos políticos, estrangeiros e brasileiros,
apresentam fortes traços de comportamento sociopático. Carismática e vivaz,
contou um episódio que arrancou risos da plateia. Ela ficou encarregada de
elaborar o laudo pericial do criminoso que recebeu o nome de “maníaco do
parque”. No primeiro encontro que tiveram, na penitenciária, na companhia de
dois policiais, ele lhe sugeriu que ordenasse a saída deles, pois “assegurava
que nada lhe aconteceria”. Uma bem-humorada resposta resolveu o impasse, pois Ana
Beatriz lhe disse que, sendo portadora de TOC e tendo feito todas as perícias
de sua vida com dois policiais, se mudasse alguma coisa seria incapaz de
realizar o trabalho. Sem saída, o rapaz ficou calado.
Passando
por acaso por uma rua, encontrei a escritora Carola Saavedra na porta da Casa
Bondelê, onde daria, logo em seguida, um longo depoimento a Anna Monteiro,
entrevistadora experiente e conhecedora de sua obra. Resolvi entrar e
participar da atividade, que foi uma das mais atraentes da FLIP. A escritora
falou sobre o seu novo romance, “Com armas sonolentas”, cujo título foi
retirado de um poema de Sóror Juana Inés de la Cruz. O livro, polifônico, conta
a história de três mulheres que vivenciaram o exílio e o abandono, o
desencontro de idiomas e de lugares. Surpreendeu-me a fala de Carola, muito
intensa e emocionada. Uma apresentação inesquecível, para mim.
Carola Saavedra, autora de “Com armas sonolentas”, durante seu depoimento |
Na
Casa do Desejo, participei, como debatedora convidada, da mesa intitulada
“Paralelos entre o golpe de 1964 e 2016: o papel da arte na resistência”, com
os jovens escritores Rodrigues Novaes de Almeida, autor do livro “Das pequenas
corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos”, e editor da revista Gueto; Wilson Alves
Bezerra, autor de “O pau do Brasil” (poemas) e a ilustradora Sylvia
Soares, que lançou o livro “Às vezes as
pessoas não vão com a minha cara”, contendo seus desenhos das personagens do golpe.
Na mesa da Casa do Desejo. Quem fala é Rodrigo Novaes de Almeida |
Foi a
minha primeira apresentação na Festa, e valeu a pena. A sala era pequena e por
isso não dispunha de muitos lugares, mas estava lotada e ninguém saiu durante a
discussão. Rodrigo Novaes de Almeida falou, emocionado, sobre a situação atual
do país e as perdas sofridas em diversas áreas. Wilson Bezerra leu alguns
poemas de seu livro e Sylvia Soares contou que os desenhos de sua obra foram
feitos durante o período que antecedeu à saída da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Com os debatedores na mesa da Casa do Desejo. |
Falei
sobre “O indizível sentido do amor", cujos temas centrais são morte, perdas,
luto, cortes nas trajetórias pessoais e ditadura militar. Contei resumidamente
a história do meu marido, ex-preso político, que morreu em 2012, e como sua
vida foi afetada pelas torturas a que foi submetido e as perseguições que
sofreu. Senti um grande interesse do público pelo tema.
Mariana Basílio, que lançou Tríptico Vital e eu, na Casa do Desejo. |
Por
último, gostaria de acrescentar que o título dessa crônica, “A alma encantadora
da FLIP”, faz clara alusão ao livro “A alma encantadora das ruas”, do
jornalista e escritor João do Rio, o criador da grande-reportagem no jornalismo
brasileiro, de quem sou grande admiradora. Tomando como base os homenageados da
Festa em 2017 e 2018, respectivamente Lima Barreto e Hilda Hilst, deixo aqui
uma sugestão: por que não homenagear também João do Rio, que revolucionou o
jornalismo no país, cronista formidável, que escrevia com as vísceras? Fica
aqui a ideia, na esperança de que algum dos organizadores da FLIP dela tome
conhecimento.
Rosângela Vieira Rocha é escritora, professora
aposentada do Curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB,
jornalista e advogada. Tem doze livros publicados, para adultos e público
infantojuvenil. Seu último romance, “O indizível sentido do amor”, foi
publicado pela editora Patuá, em 2017.
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